Pedro Andrade NK

“Para sempre Tua dor
(e demais estímulos desses)
derrama melados pr’a estes
dedos que fluem Tua Obra.
Alguma vez deixes que a cobra
seja solta e Tos constrinja.
Seja sempre intra-meníngea
a fonte eterna de meus versos.

Abram-se as portas,
façam-se os cortes,
desvende-se o segredo ao Homem,
vejam-se as bestas que há tanto dormem
nessa jaula que é seu peito.
Eleve-se a manta do leito.
Pregada, vibra com os grunhos,
invisíveis fortes punhos,
ribombando lá por dentro,
de um qualquer antro no centro.
Lá dormirá a maior delas…
nas entranhas das cidadelas,
brancas neve, trabalhadas,
peças do grande colosso.
Desnude-se até ao osso,
fáscia a fáscia rasgando
pedaços do manto nefando,
carnudo, espesso, adiposo,
que lhe tolda a bela forma,
os bruxuleios de caverna
que lhe dançam peito adentro.
Sob tão nulo tegumento
jaz a prima Criação.
Eis que se vê a prisão,
escavado bem o peito forte,
infligindo fundo corte
nas suas fartas carnes rubras.
Adentro gaiola furada
clama o Bicho a morada.
Engana-se o que pensa
que a qu’entregou sentença
aos dois primos ancestrais,
essa dos saberes carnais,
a serpente aliciante,
dorme em terra distante,
apartada num deserto.
Instala-se ela bem perto…
Pelo próprio Homem adentro..
Nunc’ela deixou seu centro…
Lá está, pulsando, guinchando, cuspindo,
regurgitando suco infindo,
da cor das carnes, mas mais vivo.
Será um castigo altivo,
o que a gruda nesse sítio,
mordendo o próprio rabo ímpio,
chupando, sugando o que há pouco
nesse seu cuspir tão louco
excretou, sempre enojada
eternamente engasgada
com a própria secreção.
O Basilisco aqui expia,
dentro de a quem a delícia
dos saberes, doces mundanos,
vendeu por História de danos,
ânsias, ciúmes, raivas, ódios,
glória, palmas, louros, pódios,
enfim, o conto todo do Homem.
Trancado e bem encoberto,
chegando algo aqui é certo:
todo um Homem trespassou,
os pulmões lhe apartou,
rachadas todas as costelas
e arrancado fora o esterno.
Penetra no salão um externo
e grita o Grande Sibilante,
ejeta mais preste a bebida,
e mais bebe de seguida.
Vê-se logo na cabeça
esse pulsar que nunca cessa
rangendo, engolfando goles,
abrindo e fechando os foles
vomitando pelos cornos,
espetados um de cada lado,
nesses sacos que ar amado
bebem e dão de beber,
ao rio, castigo eterno,
desse bicho, o Inferno.
Essas bolsas fervilhantes,
espremidas por instantes
e logo preste enfartadas,
criaturas irreguladas,
essas duas gémeas sacas:
ora expelem juras fracas,
soltas, vis, de arrepio,
ora um grito sandio,
ulular de manicómio
carregando pandemónio,
que nem sonham, os sãos lá fora.
Pois tem de lá vir embora,
esse fluido, agora farto,
esperam-no dentro de quarto
vizinho de onde veio,
nesse bicho que é tão feio,
e o chama atrás da pele.
Dos balões volta então ele,
não vá um sopro de leve
ter o réptil renegado.
Lá vem ele endiabrado
trotando por rubras paredes,
curadas as vítreas sedes,
de pujança aos trambolhões
explode, arromba c’os portões,
outro estrondo faz-se ouvir
nesse peito a percutir.
Afoga as cavernas carnosas,
que tantas voltas, tantas glosas
viram chegar e partir,
molhar o antro e fugir
corriqueiras pr’outro lado
levando o calor amado
para longe uma vez mais,
pois qu’esses néctares carnais
não saciam a serpente:
quer a vida sempre quente,
que quieta por momento
passado um só segundo lento,
esfria a sangrenta bebida
e já não mais se tem nutrida
essa besta que tudo opera.
Um’outra porta mal espera
dar o estrondo de abertura.
Espreme essa parede dura
os seus ternos conteúdos
engrossando, acumulando
pulante e rubro galgo nefando
que espuma pela presa,
um só passo além-represa.
E de rafeiro passa a touro,
e já tão perto do estouro,
debandada dele nasce.
Haverá algo que não arraste
tal faminta multidão?
Como pode o portão
assentar firme fundamento
contra tão alto portento?
Enche a vontade às hostes,
põe-se todas a postos,
puxam atrás o ariete.
Como um só, se arremete
o ombro amorfo na barreira,
e berra ela derradeira
trespassada, enfim, quebrada.
Num som só é condensada
sua morte repetida
a cada nova vil batida.
E galopa, trota, arranha em volta
esta Fúria agora solta,
tola de rever de novo
todo o recanto oco
que outrora preencheu,
até que se aborreceu
e caminhou serpente acima.
Corre então enlouquecida
a torrente, jorra a vida
e logo chega o cruzamento
que a para por momento
e lhe dá as escolhas três:
Fluir abaixo aos pilares,
forcados espinhos atracados
nesse chão qu’aprisiona,
o pobr’Homem qu’ambiciona
voar aos céus, que tanto quer?
Ir lá abaixo abastecer
os pastos verdes da fundação?
(Desengane-se a mente estulta
que julga ser Ílion defunta,
pois corre ela bifurcada
nessa via consagrada,
eterna prole de seu sangue.
Sobrevive ela possante,
até no Grego qu’alto brande
vitórias dessas mais externas,
em nada ao seu povo ternas
nas tribulações do tempo).
Mas não se põe nesses trabalhos,
o rubro ponche ainda aos saltos,
ponderando sua rota.
E a via que lateral brota,
escorrendo viçosa pr’os lados?
Faz a cruz dos fortes braços
coroados lá no fim
com as traves de marfim,
d’Ele os primos mensageiros,
dedos ágeis, dedos ligeiros,
que Sua obra deitam fora,
os aquedutos da Aurora,
e da mais cerrada noite,
não somente a negra foice
que de espinho crava a testa
do que arranha como besta
mas também semente d’ouro,
de onde nasce tenro o louro
que encabeça o belo obreiro.
Belo destino derradeiro
para sangue adoçado
é o dedo d’abençoado
que adoça com ele as páginas…
Flua ele para pena
e decerto foge à pena
de cessar a vida mudo,
esse homem tão sortudo
que lhe deu esse trajeto.
Mas não deste é o projeto,
o de prendar o suco a outros.
Rege-se a ditos dos roucos,
os restritos ao momento.
Perde então a bicha alento
de galgar par’essas pontas.
Que outra via, crossa, aprontas?
Há ainda uma acima…
Dizem ser via divina,
essa que aos Céus aponta.
Que terá ela na ponta?
A que paragens levará,
por quantas outras parará?
Bem sei que há de terminar,
que confinado sempre há de estar
o Homem aos confins do Homem,
suas vísceras que revolvem
seguem a danada regra
de para sempre a fossa negra
as barrar da extrusão.
Ora, fuja-se, pois então,
do Basilisco pendurado
e de seu sopro arfado.
Esqueçam-se as tribulações
dos contínuos turbilhões
que remete sem pensar.
Pelos cordéis que o suspendem
a uma terra mais além
se trepe com esforço,
a ver se no distante troço
haverá um fim à Besta,
uma parte que aqui reste
onde o braço vermelho
deste infernal aparelho,
não tinja também de encarnado.
E é percurso atribulado,
esse da ponte vital,
onde um raspão de punhal
logo colhe, gritando, o ser,
libertando num gemer
toda a fúria desses mares,
borrifados pelos ares
em esguicho excruciante.
(Como lhe dá para o desejo,
a esse Homem, o do beijo,
ciente ele das ameaças…
não o sei, mas eis que as raças
térreas todas se acometem,
a esses gestos que prometem
tanto pena como garra…).
A muitos entes se agarra
este fio direitinho,
e tão bem esticadinho,
feito cordel de marioneta…
Abraça a goela abjeta
e deixa entrar os belos ares.
Pena que p’ra fora jeta
maus dizeres, vis injúrias,
nas suas viagens escuras
aos terrenos dessa língua.
Temperado pela Besta
decerto não achamos nesta
escura paragem o exílio,
pois que por cada som idílio
três mil roncos solta a boca.
Muita besta desta toca
sai lançada pr’as orelhas,
essas externas, daqui alheias,
onde acende iguais centelhas
e perpetua frases velhas
ditos iguais, frouxos, sem baque,
até que nenhum se destaque,
e a fala outrora limpa
não mais que uma cópia ímpia
de um latir de um grasnar
se começa a assemelhar,
aí se cala todo o mundo.
Não mais neste antro imundo
nos retamos um segundo,
este hálito não agoura
qualquer dádiva vindoura
de mais alto entendimento.
Não fiquemos mais um momento.
Alemos fora da caverna,
que se estende, mais externa,
e para dentro andemos preste.
Volta-se a ouvir a ténue prece
vinda desse buraquinho
que de globo redondinho
murmura algo indistinto…

Lá troa algo jocoso, sinto,
esconde-o o muro couraçado.
Suba-se então com cuidado,
pela estrada sinuosa,
que na bruma cavernosa
ondula, esconde, serpenteia,
se emaranha como teia
nas entranhas da masmorra.
Quase no topo da torre
a bela luz de novo espreita
de fina frincha sai perfeita,
com contornos de cintilo,
e adornos d’alto brilhos.
Há paragem conhecida,
na História que guarida
deu algum dia a luz assim?
A um passo de seu fim
está a jornada ascendente:
enfrentarei calor ardente
ou gelarei em frio casmo?
Na entrada, assim pasmo
até que firme me preparo,
e me encolho pelo ralo.
Mergulho então cúpula adentro…
E eis que acho o vero centro,
o auditório tripartido,
o Éden há tanto escondido,
jardim todo ele sulcado,
um planalto cavitado,
em intrincâncias de labirinto.
Então existe… O mor recinto
sempre restou pelas eras…
E quem diria que nas feras,
essas criaturas meras,
de mesquinhos, vis interesses,
verdes ciúmes fracas preces,
rubras raivas, lúteas inércias,
enfim, gigantes paramécias,
jazia ainda encravado,
o paraíso procurado…
E dele nunca suspeitei,
tanto ouro reparei
exsudando de ilustres
e nunca achei que esses lustres
neles próprios tinham génese.
Que de cima Ele viesse
estava certo e convencido.
Tinha-O por foragido,
e há já tanto tempo O caço
mas Ele é meu, presente e escasso…
Eis que a uns dedos de pele
me cumprimenta, alegre, Ele:
Tumescente e luminoso,
um labirinto glorioso
jardim de circunvoluções,
onde rumores, revoluções,
troam nas ondas pegajosas.
Ai que brilhantes, lindas glosas
emergem de um de seus cantinhos!
E que seres mais estranhos
coabitam suas fendas!
São produtos dessas lendas,
criaturas das celestes
contorcendo-se em agrestes
voltas, giros, contracurvas,
umas cegas, outras surdas,
cooperando como Greias
no ofício das Ideias.
Umas mascam, as com dente,
essas que mais lá na frente
separam o pensar do lixo,
não vá o nefando bicho
passar n’ação despercebido…
Outras ouvem, as d’ouvido,
não se escape nem gemido
no fazer da alta arte,
que se impregna em toda a parte
esse arrufar dos ares
(que esquecê-lo era negares
que de ar és arredado,
que no vácuo jaz isolado
o teu ser, sempre correto).
Umas mais safam do preto
eterno, vida sem feixe algum
quente raio de fotão,
que desde a fronte até à nuca
me assegura de que muda,
a cada momento passando,
este mundo palpitando.
Dizem-me mudar de cor
e me avisam do torpor
que se esconde nas folhagens.
Enfim, inúmeras paragens
comunicam coordenadas,
e no fim belas, refinadas
saem de ouro as coisas boas,
sendo certas as pessoas,
nem podiam de outra forma.
Nem mesmo de outro lado
poderia o prendado
fazer jorrar o bom que faz,
pois que então acima jaz
uma assembleia de condados
todos eles dedicados
a pensar, não a doer,
a matutar, não a roer,
a elevar, não a viver.
E todas fazem o que sei
o que sou, o que serei,
não me colhendo tenro o Fado.
Enfim, foi então por mim achado
o rei, a coroa,
o centro de minha pessoa.
Deus Nosso Senhor, o próprio.
Racha o ovo e descobre-O
encolhido nesse globo
governando todo o povo,
em acrópole abobadada
de onde cai, frouxa, a alçada,
a trela sobre o Basilisco.
Triunfante sobre a ponte,
às ambições de Faetonte
desse bicho que medeia,
não acede. Da Ideia
tem as rédeas sempre em mão,
não vá o Homem quedar ao chão
e de quatro pôr-se a andar,
decerto o que é de esperar,
se se move pelo peito.
Fosse de lá o jeito
com que fala e se modera,
tinha a selva uma mais fera,
um verme, um porco, uma quimera
de coisas vis, podres, animais,
que de comer, beber e pouco mais
fazem sua grã missão,
dignos de casco, não de mão.
Como se ria relinchante
chafurdando em lama tanta
que d’imundice o afogava…
Na própria merda delirava
estúpida mula desgovernada
se atrelada não estava
a serpente dos impulsos.
Mantém firmes esses pulsos,
Senhor de tudo, da razão,
nunca afrouxes essa mão,
que tanto triste exemplo
olhando ao lado não contemplo
desses seres, quais Teus filhos.
Milhares escavando trilhos
em roda em roda sem parar,
a cada passo a esperar
no seguinte a chegada,
só pr’a na vital passada,
desiludir-se uma vez mais.
Outros tantos vejo retrógrados,
contemplando os passados
tal e qual os condenados
profetas, messias, videntes,
retorcidos colos assentes
em dois ombros anteversos,
choram baixo, escrevem versos,
arrastam-se por esses cantos
murmurando uns quaisquer cantos,
recordando, coitadinhos,
um decote, uns labiozinhos,
que lhes escaparam, pobres almas.
(Dê-lhes todo o mundo palmas,
tal é nova essa ideia…)
Vivem todos pela meia,
pois assim deram a alma,
e certo é que a cada dama,
metade dessa também vai,
e nesse poço infindo cai
sem uma vez olhar o fundo.
Mas mais terrível nesse mundo,
é quando dorme longa sesta
o regulado, atrás da testa,
e a seu deleite e bem prazer
é deixado a estremecer
o basilisco nefando
que mesmo preso, lagarteando,
se infiltra em todo o Homem…
Não há acima Fados que domem
um homem que viva do sangue,
basta um nada pr’a que zangue,
um olhar para que ame,
e um silêncio p’ra que derrame
sangue, lágrimas infindas…
São seu pavor as moças lindas
mas vive delas, o idiota…
Morre mil vezes na derrota
mas eis que se ergue nos pés,
dizendo que será dessa vez,
será dessa, de certeza,
e eis que vive na empresa
de caçar, não alto estágio,
mas o cinzento ordinário.
Sempre um Deus haja em Mim,
não me torne eu assim,
maquinado pela víscera.
Não me dome a lascívia
de um ser que nada pensa,
não me suma a massa densa
desses sonhos que tanto amo,
seja Ele de mim amo
e não me deixe, só, no fosso.
Permanece, meu Divino,
sucumbe nunca ao alarido,
ao ribombar louco, sedento
que ecoa por mim adentro
e te persuade para o vício.
Rejeita sempre o bulício,
que te pede o enganador.
Para sempre Tua dor
(e demais estímulos desses)
derrama melados pr’a estes
dedos que fluem Tua Obra.
Alguma vez deixes que a cobra
seja solta e Tos constrinja.
Seja sempre intra-meníngea
a fonte eterna de meus versos.