Daniel Pereira
“O conceito de “estados-tampões” é vital para a Rússia (…)”
Herdeira do espólio “imperial” remanescente da antiga URSS, ocupando o vácuo de poder deixado pela antiga superpotência durante metade do século XX, a Rússia tem montado aos poucos uma posição estratégica de dominância sobre os antigos territórios soviéticos a leste da antiga Cortina de Ferro, dividindo os países sob a esfera de influência americana e com fortes ligações à NATO daqueles que aderiam ao Pacto de Varsóvia (organização criada como resposta à Aliança do Atlântico Norte).
Com isto, e apesar do final da Guerra Fria nos anos 90, assistimos hoje a uma reformulação de um choque de potências que continua a polarizar a Europa e o Mundo. Se outrora tivemos episódios que “aqueceram” essa dita guerra fria – tal como a crise dos mísseis de Cuba em 1962 – os acontecimentos mais recentes na Ucrânia poderão ser considerados como uma escalada de tensões como já não havia memória há décadas. Mas isto não aconteceu de um dia para o outro.
O conceito de “estados-tampões” é vital para a Rússia, de maneira a não ficar rodeada nas fronteiras mais próximas por estados associados ou até membros da NATO.
(Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Foreign_relations_of_NATO)
No mapa acima, vemos os países-membros a título pleno da NATO pintados de azul escuro. Os países bálticos tais como a Lituânia ou a Estónia, estão já em contacto direto com as fronteiras russas. Isto para a Rússia, sobretudo nos mais recentes documentos de “propaganda” oriundos de Moscovo (ver On the Historical Unity of Russians and Ukrainians), é uma afronta para a segurança e estabilidade de nação, pois apesar da NATO ser uma organização militar de carácter defensivo (retaliação apenas na eventualidade de um ataque a um dos estados membros), é visto como uma espécie de cerco do mundo ocidental à Rússia e seus aliados. A isto junta-se o facto de estarem colocados, em diversos países próximos, sistemas de armamento como mísseis de médio e longo alcance assim como tropas americanas e de outros países europeus.
Este pensamento de um “cerco” montado pela NATO e o Ocidente tem raízes históricas no facto do território ter sido invadido durante a 2ª Guerra Mundial, pelo que o próprio Pacto de Varsóvia visava a evitar uma expansão a oriente da NATO. O antigo secretário de estado norte-americano James Baker inclusive teria prometido a Gorbatchev (o último dirigente da URSS antes da sua dissolução) que a NATO não incluiria países aliados aos soviéticos em troca da não-interferência na reunificação alemã, em 1990.
No entanto, isto não aconteceu inteiramente, pelo que a vários países foi concedido o estatuto de membro da NATO e, em 2008, a Geórgia e a Ucrânia foram igualmente convidadas para fazerem parte da organização. Em resposta, a Rússia invadiu a Geórgia nesse mesmo ano (sob o pretexto da libertação de zonas semi-independentes dentro do país). Mais tarde, em 2014, com um pretexto semelhante, a Rússia montou uma ofensiva “indireta” para a invasão da península da Crimeia e da região do Donbass, respetivamente no sul e no leste da Ucrânia, territórios nos extremos desse país. Estas regiões têm uma grande percentagem de russos na população pelo que Moscovo aproveitou esse facto para levar a cabo essa campanha de “libertação”.
De facto, nunca houve um conflito abertamente assumido da parte russa, dizendo que as tropas presentes nestas zonas não têm qualquer tipo de afiliação ao Estado russo, mas não sendo nada mais do que separatistas locais que se identificam como russos. No entanto, existem inúmeras provas documentais demonstrando que esses mesmos soldados estão munidos de armamento de grau militar usado atualmente pelas tropas russas convencionais e, muito provavelmente, sendo soldados “descaracterizados” e muitos deles integrantes das forças especiais russas. Isto levou a que, em 2014, estes soldados ocupassem lugares estratégicos na República da Crimeia, sendo ajudados por civis e por forças paramilitares. O resultado foi a instalação de um governo separatista pró-russo e da organização de um referendo sobre a independência da Crimeia, que veio a resultar numa declaração dessa mesma independência e de uma posterior anexação formal da parte da Rússia. Na região de Donbass, o conflito mantém-se desde 2014, em moldes semelhantes, entre o exército ucraniano e os separatistas com afiliações a Moscovo. Vladimir Putin negou constantemente o termo de “invasão”, justificando-se sempre com o direito à autodeterminação dos povos.
Posto isto, tendo em conta o background e o contexto histórico, porque é que desta vez existe uma séria ameaça de guerra abertamente declarada entre as duas nações?
Anualmente, a Rússia organiza exercícios militares nas imediações das fronteiras com a Ucrânia, incluindo exercícios em território bielorusso (aliados de Moscovo) e moldavo. Em anos anteriores e desde os conflitos de 2014, estes jogos de guerra mobilizam dezenas de milhares de soldados, equipamento e toda a logística acompanhante de operações desta envergadura. O que acontece é que desta vez, isto tomou proporções bastante mais significativas. À data, estarão perto de 190 mil soldados russos a dezenas de quilómetros das fronteiras separando os dois países. E tal como previamente, estão neste momento algumas unidades russas em solo bielorusso e moldavo, assim como na Crimeia e no leste ucraniano, quase rodeando a totalidade do país e permitindo várias potenciais frentes de combate, tentando esticar ao máximo as capacidades defensivas de Kiev. A isto se junta uma logística imensa, incluindo hospitais de campanha já preparados e um arsenal bélico não observado em anos anteriores. Moscovo chegou ao ponto de estar a atualizar as normas de saúde pública a respeito de enterros em vala comum, tudo sinais quase premonitórios do que poderá acontecer nos próximos dias.
(Fonte: https://www.washingtonpost.com/world/2022/02/17/ukraine-russia-map/)
Além de toda esta preparação e mobilização de recursos em massa, existem já algumas escaramuças que aumentaram de tom na região separatista, no Donbass. Alguma artilharia nesta região foi disparada em direção à cidade de Donetsk, existindo também um relato de uma explosão originada num carro-bomba, perto de um edifício administrativo. Ouviram-se também sirenes de alerta, ordenando à população para se proteger e encontrar um lugar seguro. A escalada de tensões é notória, sendo que a maioria da população não tem meios para conseguir evacuar no imediato esta região. No entanto, Moscovo anunciou uma ajuda monetária para todos os potenciais refugiados que optassem por atravessar a fronteira e instalar-se em solo russo.
No campo da inteligência e dos serviços secretos, existem ainda relatos de listas organizadas por Moscovo para o aprisionamento e mesmo execução de alguns oficiais e membros políticos associados ao governo Ucraniano; isto é, no entanto, dotado de grande especulação, não podendo ser considerado completamente fidedigno. No cômputo geral, assistimos a um potencial uso dos chamados “false flags” da parte de Putin ou, pelo menos, de eventos e de uma narrativa onde a Ucrânia surge como agente ofensivo no conflito.
O facto da Rússia ser uma potência nuclear, dispondo do mais numeroso arsenal atómico no mundo (cerca de 6500 ogivas nucleares), é um fator agravante para este conflito. A nível militar, contam-se cerca de 3 milhões e meio soldados russos (incluindo reservas), estando perto de 1 milhão no ativo. Com um gasto de cerca de 43 mil milhões de euros anuais (cerca de 18% do PIB de Portugal), dispondo de 20 porta-aviões, centenas de outros navios de guerra e submarinos e perto de 1500 aeronaves, a Rússia continua uma grande potência militar e, certamente, o jogador mais importante no tabuleiro da Europa de Leste e Ásia Central.
Assim, assistimos neste momento a tensões excecionalmente elevadas e com as atenções voltadas para o flashpoint geopolítico mais importante dos últimos meses. A volatilidade é muito grande, pelo que provavelmente assistiremos muito em breve (talvez uma questão de dias ou até horas) a um conflito armado entre as duas nações e toda a esfera de influência associada a cada um destes atores.
Isto trará consequências (algumas previsíveis) a nível mundial, afetando significativamente a Europa e, consequentemente, Portugal. Os mercados financeiros estão já a ressentir os efeitos, sendo que o fornecimento de algumas comodidades como o gás (sobretudo na Europa Central) e de cereais poderá ser imediatamente comprometido; obviamente, além disto, temos as consequências políticas e humanitárias que, no rescaldo de uma pandemia que acomete o mundo há 2 anos, não pinta de todo um cenário muito otimista a curto prazo.