Gonçalo Gomes

“A certeza que fica é que sociedades onde existem menos desigualdades económicas e sociais são definitivamente mais estáveis, justas e livres – essa deve ser a nossa meta.”

Para um cidadão informado acerca da agenda política, não será uma novidade quando digo que o regime de carga fiscal português tem sido um dos hot topics do mês. Este tema foi trazido à discussão na esfera pública através de duas propostas de dois novos partidos, embora com algumas diferenças entre cada uma delas.

O único ponto de partida possível de modo a abrir espaço à reflexão que pretendo provocar é a clarificação do que está “em cima da mesa”. A primeira proposta defende a criação de uma taxa única de IRS de 15% – denominada popularmente como “Flat Tax” – para todos os rendimentos mensais superiores a 650 euros; a segunda propõe uma taxa única de 15%, sem qualquer tipo de isenção e aplicada à totalidade dos contribuintes. Tanto uma como a outra adicionam um novo elemento à discussão: o fim da progressividade da taxa de imposto.

É difícil não sentir alguma simpatia pela ideia de impostos mais baixos para uma classe média que tem sido esmagada pela carga fiscal. No entanto, a realidade é mais complexa. Em primeiro lugar e, apesar de todas as más conexões que todos temos quando ouvimos a fonia da palavra “imposto”, é importante realçar que este permite a subsistência de algo basilar na nossa democracia: a redistribuição de ganhos capaz de suportar um estado social. Por outras palavras, ajuda a diminuir as desigualdades económicas, assegurando saúde e educação, como direitos fundamentais, a todos os cidadãos, sem exceção.

Neste seguimento, vale a pena realçar a conclusão da análise do departamento de Assuntos Orçamentais do FMI, que coloca Portugal como um dos países onde o esquema de IRS mais eficazmente combate a desigualdade e onde os mais pobres pagam uma das taxas marginais de impostos mais baixas do mundo.

Em contraponto ao sistema atual aparentemente eficiente, a proposta pretende implementar um alívio fiscal que aumenta, não proporcionalmente, mas sim exponencialmente com o aumento do rendimento do cidadão. De forma clara, isto significa que não haveria nenhum aumento no salário líquido para a classe pobre, uma vez que a grande maioria desta (47% das famílias portuguesas) já aufere salários isentos, um aumento simbólico no salário para a classe média e um aumento gigantesco e desproporcional para a classe rica.

Ainda assim, é um aumento para uma parte da população. Onde está o senão? Uma perda de receitas estimada na ordem dos 3 mil milhões de euros anuais; para termos de comparação, o valor corresponde a mais de um terço do custo do SNS. Nesta situação hipotética, a classe baixa não só não veria um aumento no seu salário como também veria uma perda de receitas substancial, com um consequente corte nos serviços públicos dos quais é tão dependente. É isto que está em cima da mesa.

E de acordo com o Inquérito à Situação Financeira das Famílias, as 10% famílias mais ricas em Portugal detêm mais riqueza do que as restantes 90% juntas. Dados que ilustram uma forte assimetria na distribuição da riqueza e que nos levam a presumir que vivemos num país que tem um esquema de IRS propício à diminuição da desigualdade, mas que ainda assim, continua um país extremamente desigual.

E é esta a temática fulcral que retiro da discussão que essas propostas vieram trazer ao espaço público. Se, pessoalmente, discordo completamente da sua aplicabilidade, reconheço que enfrentamos um problema estrutural gigantesco que impede sistematicamente que jovens talentos se mantenham no país, que trabalhadores consigam salários justos, que famílias que recebem o salário mínimo consigam sobreviver numa cidade com valores imobiliários extremamente altos, enfim, que pessoas pobres possam ambicionar ser assim-assim e que pessoas assim-assim o deixem de ser.

O facto do rendimento da família onde cada um de nós nasce ser, ainda hoje, um fator tão ou mais decisivo no nosso futuro que a nossa própria meritocracia é um dos problemas mais perturbadores da atualidade e que está no cerne de muitas questões divisórias. Se o salário de um trabalhador não é proporcional à sua produtividade, mas sim dependente de inúmeros fatores externos condicionantes propícios de um sistema capitalista, então as premissas iniciais de que a meritocracia existe e de que uma pessoa ganha tanto mais quanto tanto mais trabalha demonstram-se completamente refutáveis. Quando isso acontece, sabemos que falhamos enquanto sociedade e que precisamos de mecanismos compensatórios.

E se é verdade que este problema precisa de respostas e soluções, também é verdade que estas devem ser feitas sem que sejam corrompidos os princípios basilares da nossa democracia. A certeza que fica é que sociedades onde existem menos desigualdades económicas e sociais são definitivamente mais estáveis, justas e livres – essa deve ser a nossa meta.