Miguel Lobo Barbosa

“Acreditar hoje que o projecto europeu pode ser reformado a partir do seu próprio quadro institucional afigura-se de uma candura infantil ou mesmo romanesca.”

Comemorámos o ano passado o cinquentenário da publicação de O Mestre e Margarita, um dos mais impressionantes romances do século XX. A génese desta obra afigura-se tão complexa como a própria narrativa que encerra; Bulgákov haveria de consumir mais de 20 anos nesta que seria a sua magnum opus. Por entre manuscritos queimados, variadíssimos rascunhos e diversas versões, o russo haveria de escrever as derradeiras frases um mero mês antes da sua morte, em 1940, vinte e sete anos antes da primeira tiragem (editada em Paris). Tamanho atraso e tão fundos receios são fáceis de explicar: falamos, afinal, da mais extraordinária sátira ao Estalinismo, ainda para mais escrita em plena Moscovo.

Ignorando aqui quer os personagens titulares, quer a fascinante narrativa em abismo dedicada a um humaníssimo Jesus – muito próximo, aliás, do sonhado pelo queirosiano Teodorico “Raposão” na sua visita à Palestina – o foco mais estonteante do romance prende-se com a visita do Professor Woland, mágico e especialista no esotérico, à militantemente ateísta e burocrática capital da União Soviética. Woland, apercebemo-nos rapidamente, é o bom velho Satanás, o qual vai, juntamente com a sua comandita (onde se destaca o inenarrável Behemoth, gato do tamanho de um porco que faz as vezes de bobo do diabo), ridicularizar sócio-politicamente as novas elites soviéticas (curioso oximoro), ao mesmo tempo que sublinha cruelmente a vacuidade, o ridículo e a cobardia das suas existências.

Meio século volvido, parece evidente que, a existir um novo avistamento de Woland, este ocorreria com grande probabilidade na capital da União Europeia, um palco também ele totalmente dominado por uma nova e poderosíssima nomenklatura burocrática, que tomou o poder não com tiros, mas com folhas de Excel. Recorro às declarações do antigo ministro das finanças grego Varoufakis para ilustrar mais pungentemente este golpe: os governantes e parlamentares gregos viveram vários anos literalmente nas mãos do “discreto” (isto é, não eleito) economista austríaco que preside ao Grupo de Trabalho do Eurogrupo; Thomas Wiser chegou ao ponto de ditar leis e nomear o director do fisco.

Acreditar hoje que o projecto europeu pode ser reformado a partir do seu próprio quadro institucional afigura-se de uma candura infantil ou mesmo romanesca. O próprio exemplo da solução governativa em vigor no nosso país é disso exemplo: por mais metas que se cumpram, os cônsules renovam eternamente os avisos e as impossibilidades de qualquer acção verdadeiramente reformista, mesmo numa lógica keynesiana. Continuando a abusar nas referências aos grandes romances do século passado (desta feita um de Joseph Heller), vivemos num permanente catch-22…

A mobilização social deve, por isso, procurar quotidianamente novos e mais corajosos objectivos. O primeiro dos quais terá de ser, obviamente, a desobediência absoluta ao diktat dos tratados europeus. Outros – e não menos importantes – são a estabilização dos fluxos financeiros, a auditoria democrática das dívidas soberanas e, claro, a total reconceptualização (quiçá o fim) do Euro. Mostremos, pois, que a fábula do “fim da história” não nos entretém nem mais um segundo. É tempo para um verdadeiro internacionalismo.