Maria Alves
“Pensando bem,
temos o ar descapitalizado
que tínhamos quando nos conhecemos.“
O nosso amor declarou insolvência.
É, agora, necessário pagar aos credores:
o hábito, o conforto, mas, sobretudo, a
esperança.
Talvez não tenhas reparado,
mas começaste já o inventário dos despojos,
quando adquiriste esse vício de evocação da
felicidade.
Que tinhas hipotecado o futuro,
soube-o ainda antes,
quando paraste a tua linha de montagem de
planos delirantes,
e cedeste a mão de obra
à produção em massa dos meus pragmatismos
de consumo quotidiano.
Temos o ar descapitalizado
de quem investiu o que restava de um
património delapidado
em mais uma derradeira empreitada.
Pensando bem,
temos o ar descapitalizado
que tínhamos quando nos conhecemos.
Tudo o que perdemos foram
uma injecção mútua de falsas divisas que
imprimimos juntos,
dois idílios farisaicos herdados dos pais,
e réstias de nós que recuperamos em partilhas
que não recordávamos ter pendentes.
Tu olhas o livro de cheques,
e fantasias sobre endossá-los,
mesmo que, por ora, nenhum tenha cobertura.
Eu olho-te, e sorrio, enquanto arrumo
maços de facturas e cartas de amor,
E penso na futilidade de tudo isto.
Em breve seremos apenas mais uma entrada
no livro de contas um do outro.
As únicas incógnitas que restam são
quanto valemos, ainda, em hasta pública
e qual de nós vai ser o primeiro a ser resgatado.