João Marques

“Nesta tela de sonhos humanos, cada autor expõe uma visão, que bebe das próprias vivências. Se tiver de pensar sobre um, é-me fácil de escolher. Greta Gerwig.”

Escrevemos sobre o que gostamos, e acerca do que precisamos. Escolho fazê-lo sobre cinema. Se me perguntarem o que é o cinema, não saberei responder. O cinema é tudo, o que habita o real, e o imaginário. É diferente em cada olhar: são as experiências do coletivo, vivenciadas de maneiras infimamente particulares. Talvez saiba responder para que existe. Para mim, a arte cinematográfica é um espelho que desconstrói a própria condição humana, que põe a nu o belo e o aterrador. Exigindo apenas a imersão, desprendida, do espectador, ensina-nos e dá-nos tanto. Nesta tela de sonhos humanos, cada autor expõe uma visão, que bebe das próprias vivências. Se tiver de pensar sobre um, é-me fácil de escolher. Greta Gerwig. A atriz norte-americana que confiou no seu instinto e dirigiu dois filmes, onde expõe o seu mundo. E o mundo reconheceu-a: com aclamação crítica, e comercial.

O primeiro filme de Gerwig, “Lady Bird”, é um eco de verdades inalienáveis da adolescência. As “fraquezas” de estreante são utilizadas como armas de arremesso: à medida que vemos Lady Bird crescer, falhar, e crescer de novo, somos convidados, também, a assistir ao crescimento de um talento atrás das câmaras. De facto, é em torno das (nostálgicas) dores-de-crescimento que somos envolvidos. As vicissitudes do ser-se adolescente, perante a entrada na vida adulta, são expostas no ecrã. A adolescência é, fundamentalmente, posicionada na perspetiva da turbulenta, e não infrequente, colisão de expectativas entre pais e adolescentes. Uma colisão que nos impele para o mundo adulto, que nos aguarda, e que cria fissuras com a infância, que somos obrigados a deixar. Christine “Lady Bird” McPherson doseia na medida certa a rebeldia e as inseguranças que nos fazem querer voar longe, sem que nunca nos esqueçamos de casa: o lugar-seguro, que sempre nos espera. E dá voz a uma geração inteira de mulheres decidida a não se contentar com menos do que aquilo que merece. E que não olhou para trás. “Lady Bird” assume, então, as matrizes dos “coming-of-age movies”, sem deixar de reinventar o género, e deixar a sua própria marca.

Dois anos passados, surge o follow-up. Um olhar menos atento afirmará tratar-se de um exercício meramente histórico, por revisitar um clássico da literatura já adaptado 3 vezes para o cinema. “Little Women” é um trabalho, de facto, intemporal – mas o olhar subversivo de Gerwig consegue, simultaneamente, prestar homenagem ao legado de Louise Alcott, e atualizá-lo. O espectador é envolvido no quotidiano, e confidências, das irmãs March, que vivem num período conturbado dos EUA: a guerra civil. As irmãs anseiam pelo regresso do pai, que se encontra na frente de combate; anseiam pela mãe, que procura que nada falte à família; mas anseiam, também, pelos seus futuros. Todas têm sonhos por cumprir, projetos que traçam para si mesmas, feitos à medida das suas particularidades. E quão desconcertante é assistirmos ao despertar de cada irmã. De certo modo, todos experienciamos essa transição, da meninice para a idade adulta e, com a sua chegada, a inevitável perda de inocência, de alegria descuidada e irrefletida. E é neste reconhecimento partilhado que o cinema acontece: e ficamos mais completos. Podemos afirmar que o progressismo da obra é assegurado, sobretudo, pelos olhos de Jo March (Saiorse Ronan, uma vez mais), que luta insistentemente contra as normas vigentes, que a oprimem e constringem os planos. Afirmando um ativismo consciente e fundamental, a cineasta discute, no séc. XIX e no presente, a luta vivida no feminino pela igualdade de oportunidades e circunstâncias. Mas vai mais além. Refletindo o feminismo como um conceito em si mesmo, demonstra-nos, com assertividade, que a necessidade de afirmação é feita na medida dos desejos de cada um(a). Independentemente da sua natureza. Afinal, quando Meg March afirma “Just cause my dreams are diferente, that doesn´t mean they’re not important”, somos arrebatados com essa tese que o filme se propõe a debater, e defender.

Estes filmes personalizam, acima de tudo, o que é o “cinema de personagens”. E são as personagens – o que as motiva e inspira – que constituem o derradeiro apelo do cinema. No final, o universo no feminino de “Lady Bird” e “Little Women” é maior que si mesmo. É o de Gerwig, e da sua emancipação artística. É de todos, homens e mulheres, que norteiam os seus princípios e ações por aquilo em que acreditam. É de quem grita por liberdade, para ser e fazer feliz.