Pedro Eduardo Ramos
“Assim estamos nesta modernidade: um espaço onde a perceção se sobrepõe ao objeto, (…), onde aquilo que “somos” remexidamente se confunde com as nossas crenças na nossa própria imagem (assustador jogo de espelhos).”
A nova modernidade tem contribuído muito para um abandono da prática reflexiva mais elementar, que está na base de todos os processos racionais e razoáveis de desenvolvimento. Como se compreende, a velocidade, o fluxo e a quantidade colossal de informação que circula e se acumula acaba por tornar difícil o seu processamento lógico, a dita reflexão. Vai daí que os grandes relatórios sejam espremidos em executive reports sintéticos, e mesmo sobre esses serão poucos os que passarão os olhos.
Depois temos o fenómeno das redes sociais e das grandes plataformas online, espelho de uma sociedade desintegrada e afastada da comunidade local. O descompromisso abunda numa sociedade de laços frágeis, circunstanciais. Os compromissos laborais são exemplo das relações de fragilidade, sistemas de poder que descartam o trabalho com a facilidade de quem troca de camisa. Por oposição, as estruturas sindicais envelhecidas manifestamente necessitam de uma renovação metodológica, que se adapte ao contexto volátil de um mercado interessado no “precariado” de colaboradores desmotivados, desapoiados, excluídos de todas as classificações convencionais, estimulados a contribuir com o seu esforço para tarefas que tantas vezes não compreendem (“precariado” esse, de que tão bem fala Guy Standing no seu The Precariat: The New Dangerous Class, de 2011, que recomendo).
A violência nas relações de intimidade também corrobora esta ideia de uma sociedade que alimenta os seus egoísmos caseiros e que evoluiu muito abaixo das suas capacidades: o homem continua um bicho animalesco, ciumento e violento (apenas alguns deles, claro está), que não suporta a ideia de uma nova geração de mulheres emancipadas e independentes. Das “causas fraturantes” ao marxismo cultural, uma certa revolta silenciosa tenta descredibilizar e abafar as diversidades, a exploração da individualidade partilhada e a explosão criativa e colorida das ditas “minorias”, que se explicam e se fazem ouvir com vozes crescentemente qualificadas.
Alguns outros, mais sofisticados, acusam a esquerda política de ser cada vez menos política e cada vez mais um espaço de militância minoritária. É um falso dilema, claro. Porque a luta de classes em tudo se relaciona com o racismo e a xenofobia, as discriminações suaves de um Portugal brando. Porque a pobreza e as desigualdades sociais são provas claras da (ainda) ineficaz alavanca social que nos prometeram nos primórdios da social-democracia.
Assim estamos nesta modernidade: um espaço onde a perceção se sobrepõe ao objeto, onde o orgulho dos indivíduos e das nações é imposto naquilo que “parecemos ser”, onde aquilo que “somos” remexidamente se confunde com as nossas crenças na nossa própria imagem (assustador jogo de espelhos). Talvez por isso não haja em território português um único racista assumido para amostra, excetuando os imberbes dos Chegas e dos PNRs desta vida. Talvez por isso todos tenhamos até um “amigo negro”, uma “senhora lá de casa”. As Jamaicas deste mundo, ilhas sombrias com tanto amor por dentro, relegadas para o sítio onde os sonhos vão para morrer. Ilhas isoladas com pontuais ondas de indignação: terras sem lei onde um dia chegará o xerife autoritário para trazer “mundos ao mundo” à boa maneira da caravela portuguesa, cujo veneno vem das praias atlânticas até mesmo aqui, junto de nós, neste novo paraíso a que alguém chamou “caixa de comentários”.