Diogo Bettencourt

“(…) ficarei confuso por viver num mundo tão confuso
me perderei nas ruas da minha própria cidade (…)

sou chamado pelo homem que encontro à beira estrada

ele pergunta-me como se vai em frente eu digo-lhe que vou para casa

concluímos que a vida é difícil e o mundo um lugar estranho

porém caminhamos próximos, acreditamos que nunca nos tenhamos visto sequer

alegres conversando e sabendo que mais nunca nos veremos e talvez seja isso que se quer

 

stimulitomus

preparo-me para partir

visto o casaco olho-me ao vidro olho além através deste vidro

vejo e visto e levanto-me agora com demora

parcimónia por que quero ver por – instantes – me bastaram para saber que eras tu

já não saio daqui! decidi que tenho tempo que quero chegar perto de ti

e caminho confiante num passo sedutor elegante que não condiz

caminho e até finjo que nem reparo! e desejo que me prendas pelo braço

me agarres pela cintura e encostes o nariz

e ouças o meu coração sintas a minha respiração

e sussurres docemente ‘amo-te, para sempre’

 

‘amo-te’ repetia…

(talvez não tenhas ouvido)

diz-se que o amor é cego e creio agora que surdo também

o amor é cego surdo amoral, como vos digo, amor é pensamento lascivo obsessivo

mas quero-o acredito: desejo-te mesmo quando me finges ignorar e podes parar és

evidente eu vi esse teu olhar furtivo invasivo e não sei fingi tu és e não sei o teu ser

fingi não reparar e eu sei o que procuras em mim não és só tu se fico a querer-te te

quero sempre receber-te sempre eu amo-te desejo-te perduro-me por ti amo-te

quero-te e por isso penso em ti só em ti ontem hoje e novamente invades-me o

pensamento a mente a razão e a memória e agora só faltas tu querer-me receber-me

invadir-me encher-me de ti repete agora exalta-me murmura comigo ‘eu quero!’ agora

sê-lo traz-mo fá-lo desejo-o quero-o amo-o sempre

 

bem, devo dizer-te que não sou como os outros

como esses jovens de vinte e poucos

que descobrem o sentido da vida numa semana ou a sua música favorita neste ou naquele programa

sabes, eu duvido hesito questiono perco frequentemente a noção de mim

mantenho mesmo comigo mesmo este diálogo violento contínuo silencioso

(sabes, curioso não sei se te contei mas eu não vivo em casa vivo no mundo)

duvidando hesitando e reflectindo

e ponderando pensando

permaneço então durante horas e dias e anos

mas contigo,

quero discutir o chato que é adormeceres tão cedo e eu tão tarde

sobre o frasco de mel desalinhado quando comes a tua fatia de tarte

ou sobre esse teu esgar no olhar quando quero falar-te

contigo quero discutir sobre estas pequenas coisas

sobre aquelas que não interessam que parecem insignificantes

pois sei que quando o fizermos…

(sim, estaremos bem)

se discutimos sobre estas mais pequenas coisas

imagina o quanto concordámos naquilo que nos é importante

e naquilo que achamos desconcertante

inquietante

e isso é amor

tornado assim verbo e ação:

amar (v. tran.) ‘ɐˈmar’ – [um] ter amor a, [dois] gostar de, [três] estimar, [quatro] apreciar (…) [DIGO EU] é suportar o absurdo de se viver sem se definhar por um só sentido de morrer

 

– porque não gostas de viver?

– custa-me saber que um dia terei que morrer

– e como te sentes sabendo disso?

– sinto-me a morrer – a cada instante – sinto-me um pouco mais morto porque estarei um pouco menos vivo

 

adormeço todos os dias a pensar na morte

e então sonho este sonho recorrente repetitivo tenebroso: um planeta a explodir

e algures perdido no espaço uma lápide flutuando

e nessa lápide vejo escrito o meu nome

vejo este planeta explodir e vejo o meu corpo flutuando

vejo a destruição a apoteose o apocalipse o caos

(vejo o que vejo e o que ficou por ver

vejo o que digo e ainda o que finjo não ter visto)

e isso me deixa feliz

não minto

não tenho medo de morrer

desejarei morrer depois de tanto viver

escolherei morrer quando não souber o que sou o que quero o que faço

intumescência senescência degenerescência decadência

com o tempo todas chegarão e serão bem-vindas

(o tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem

e o tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo

quanto tempo o tempo tem)

não tenho medo de morrer

acordarei um dia e não conhecerei nada e ninguém não me reconhecerei

ficarei confuso por viver num mundo tão confuso

me perderei nas ruas da minha própria cidade

porque provavelmente não se chamarão mais ruas talvez avenidas ruelas travessas

tudo muda eu mudo

sou dinâmico

(no universo nada se cria nada se perde tudo se transforma)

estou em constante mutação

nunca sou eu mesmo renovo-me a cada dia

(não sobrevive o mais forte porém o que se adapta melhor à mudança)

mas haverá um dia em que me cansarei de tanta mudança

perderei a memória do que fui de onde vim de onde estive e quando parti

e nesse dia desejarei morrer

depois de tanto escolherei morrer

 

assim como vos digo,

 

a morte não me assusta tanto como a vida

porque a morte não será o meu fim apenas o fim de tudo