Nuno Dias
“Por isso da próxima vez que vires uma cena de ação, talvez acabes por apreciar mais quando ela não é feita às três pancadas.”
Vivemos numa época em que os efeitos especiais reinam e tudo passa a ser possível transpor realisticamente no ecrã, desde dragões até savanas totalmente digitais a recitar os diálogos do Lion King. Por isso, é fácil de compreender que as audiências tenham ultrapassado o choque que tiveram ao ver o espetáculo visual de filmes como o Avatar de James Cameron. Mas, então, o que resta quando já não ficamos impressionados com o impossível? A resposta é simples e reside na dedicação que se tem a representar ação nos próprios filmes.
Para descrever generalizadamente a ação no cinema, é normal haver o destaque para duas áreas. A primeira corresponde à maioria dos filmes de ação que estamos habituados a ver – a clássica ação de Hollywood. Nisto inclui-se os blockbusters extravagantes que popularizaram as movie stars – os Schwarzeneggers, Vin Diesels e Steven Seagals a que já estamos acostumados. Até aos anos 90, esta ação funcionava quase como uma caricatura de violência em que os “capangas” voavam metros com o mínimo movimento do herói. Com o virar do século, veio o auge da shaky cam, uma moda muito praticada graças a franchises como Taken e Bourne Identity. Esta tendência consistia em dar à câmara movimentos exagerados e tremidos em momentos de ação como lutas e perseguições. O suposto objetivo desta técnica, normalmente conciliada com múltiplos ângulos de câmara a cortar entre si, seria passar à audiência uma sensação mais “crua” e realista dos acontecimentos. Infelizmente, isto apenas se torna mais confuso e desorientador para o público.
Opondo-se a tudo isto, brilha a típica ação da indústria do cinema de Hong Kong. Daí surgiram os chamados “três irmãos” ou “três dragões”: Sammo Hung, Yuen Biao e o fenómeno mundial que é Jackie Chan. Antes do seu upgrade para estrela de cinema, Chan marcou-se como um dos melhores duplos na indústria de Hong Kong e, consequentemente, de todo o mundo, depois de décadas de treino em acrobacia e múltiplas artes marciais ao lado destas outras duas lendas do cinema asiático. Tal como Michael Jackson ou Mohammad Ali, Jackie Chan tornou-se um ícone que transcende culturas e gerações. Mas o que explica a universalidade de toda a sua imagem de marca?
É inegável que uma grande parte do seu carisma colossal reside no facto de ser um everyman. Enquanto as restantes estrelas de ação se caracterizavam por uma atitude ameaçadora e imponente, Chan revelava-se como uma pessoa normal que sofre tanto como os seus inimigos e que usa os diferentes cenários para se safar de situações nas quais começa sempre em clara desvantagem.
Mas, talvez mais importante que isso, a nível cinematográfico registam-se diferenças que aparentam ser subtis, mas que acabam por elevar a ação dos filmes de Hong Kong a alturas quase inéditas em Hollywood.
Desde logo, as câmaras estão maioritariamente paradas, sendo colocadas de forma a podermos ver os elementos da ação na sua totalidade. Enquanto Hollywood aposta em dezenas de cortes entre diferentes câmaras que escondem o verdadeiro impacto dos golpes, Chan, Hung e muitos outros escolhiam cortes que mostravam os embates. Por vezes até exibiam duas vezes o mesmo golpe – uma vez para mostrar a pessoa que o dava e um ângulo logo a seguir, a revelar o outro indivíduo a recebê-lo. Esta repetição, em teoria, pode parecer estranha mas o nosso cérebro perceciona os dois golpes como apenas um, dado com mais força e energia. Ao retirar de cena muitos dos cortes norte-americanos, ela torna-se contínua, o que garante um realismo muito maior. Desta forma, achamos as lutas mais impressionantes porque as vemos a serem totalmente efetuadas pelos peritos.
E havendo peritos com qualidade semelhante em Hollywood, porque não se fazem mais manobras como estas? Acima de tudo, é devido aos curtos prazos de filmagem. Realizar acrobacias complexas exige bastante tempo, não só em preparação (para garantir que todos os participantes têm a coreografia bem estudada), mas também na repetição significativa de takes que cenas tão trabalhosas implicam. Jackie Chan era capaz de fazer 100 takes da mesma cena para conseguir eventualmente atingir o seu objetivo, mas isto requer um nível de dedicação e paciência que a maioria não está disposta a ter ao produzir blockbusters.
Felizmente, uma nova era de ação e combate foi propagada em Hollywood com o sucesso, entre audiências e críticos, de filmes como John Wick, Atomic Blonde e séries como Marvel’s Daredevil. Aliás, um método em particular veio aproximar o cinema norte-americano do de Hong Kong – a one shot. Esta técnica consiste em gravar uma sequência com uma única câmara, ou seja, sem cortes. A popularidade das one shots permitiu que o cinema de Hollywood mostrasse ao público ação fluída e contínua, não recorrendo a efeitos especiais, mas sim ao puro talento das suas stunt teams.
Por isso da próxima vez que vires uma cena de ação, talvez acabes por apreciar mais quando ela não é feita às três pancadas.
Ilustração de Mariana Gomes