Sara Moura
“Quero ser
E nisto não ser.
[Bebo a sede à questão.]”
Quero ser
Liberta do cárcere do verso inebriado,
cambaleante entre as rugas desta língua
decrépita
Quero ser
Asas de Dédalo,
Lágrima resinosa de pinheiro-manso
arrastando-se imperturbavelmente
perante a vergastada
Quero ser
Mulher sem ventre,
Besta,
Profana que se entrega sem amar
Santa que ama sem se entregar
Pecadora original,
E o Deus que a criou
à sua semelhança
Quero ser
Cravo exangue,
Ábaco, tubo de ensaio
Sobreiro, na própria sombra
abrigado
Quero ser
O retrato imutável
de um céu de janeiro
sob nebuloso véu embalado
Quero ser
E nisto não ser.
[Bebo a sede à questão.]