Miguel Pimenta

“Um dia verás que a autossuficiência e a solidão e o isolamento poderão parecer o apogeu máximo da liberdade, mas saberás que estás enganado quando recordares que só a liberdade é o apogeu máximo de si mesma.”

– Filho! A realidade é um sonho!
Um mau sonho, muitas vezes!
Mas o sonho, esse sim, é realidade!
É sempre a Realidade!
– Vem.

JHP

I

Primeiro, senti. Era assaz peculiar. Sentia. Sentir é a capacidade que certas entidades têm de experienciar mundos dentro de si que, apesar de serem, sim, reflexos do mundo lá fora, nada têm que ver com este. E à capacidade de sentir e em simultâneo intuir o mundo lá fora chama-se: “ser-homem”.

Toquei. Se antes me soubera preso, agora me agarrava às grades… pelo lado de dentro. Tocar, meus leitores, como certamente já haveis descoberto, é conhecer os limites da nossa prisão. Este foi o meu segundo pensamento. O segundo pensamento que alguma vez tive. O segundo pensamento a acompanhar a minha existência tal como vos é apresentada.

“O segundo pensamento?!” Dou-vos a minha palavra. E, embora por razões diversas, asseguro-vos que também me senti (agora que sentir já não era algo totalmente novo) surpreendido. Surpreendido ante a terceira surpresa: primeiro pensamento, segundo pensamento; 1, 2; antes, agora e em breve depois… Julguei ser um arrepio ou uma qualquer coisa incógnita para mim que era inerente à própria existência material… Percebi que era o tempo. Eu senti o tempo… O tempo sentia-se! A minha alma contorceu-se preparando o abalo doloroso e inevitável que supus seguir-se à apreensão do conceito de tempo. Mas nada, não doeu nada. Ainda não tinha chegado o momento de perceber que o tempo não dói assim, o tempo não dói como as restantes componentes da existência no mundo, mas eu ainda não sabia.

– Sei onde estás – foi a 1ª frase.

Não a disse, claro, porque provavelmente ainda nem boca tinha; nem tampouco usei vocativo, porque o “eu” que interpelava e o “eu” que era interpelado eram o mesmo… o mesmo “eu”. É evidente, o “eu”, essa entidade que eu jamais julgaria ser tão complexa, ocupava todo o meu mundo… Ocupava todo o meu mundo, da mesma forma que muitos homens, muito tempo mais tarde, deixariam todo o seu “eu” preencher tudo o que existia nos seus mundos; mas eles não seriam inocentes como eu era então. Digo: eu ocupava todo o meu mundo. Todo? Bem, todo não… Existiam duas coisas: “eu” e o “sei onde estás”. Sim, eu sei, claro que o “sei onde estás” tinha provido de mim, mas aquilo que me levara a pensá-lo não era meu, aquela certeza cá dentro vinha de fora, porque, sim, eu tinha certeza de que sabia onde estava.

Eu sabia que estava dentro da matéria, da chamada terra, da carne; eu, leitores, estava enclausurado num corpo. E esse corpo, feito de carne e de víscera recém-formada estava naquilo a que os meus sentidos e o meu conhecimento artificial fundado dentro do próprio mundo material (isto é, dentro do próprio “eu”) apelidaria (ou apelidara) de útero.

Sim, dirijo-me a vós, referindo-me ao que de mais antigo há em mim: a memória dos tempos intrauterinos. Sim, agora entendeis, dirijo-me a vós fazendo referência ao que de mais antigo há em mim, ao que é contemporâneo do início do tempo, do meu tempo… perdão, do tempo a que pertenci… perdão, sinceramente não sei quem era propriedade de quem ou o que é que era propriedade do quê.

A questão que se vos coloca imperativamente diante do intelecto é portanto esta: “mas como é que o “eu” sabia onde estava?”, acertei?

Ora bem, agora que sentimentos e pensamentos (aumentados exponencialmente) se haviam já aglomerado na mescla difusa fadada a ser alicerce da minha humanidade, surgiu a 2ª frase.

– Eu sei que estás no útero, porque eu sei o que esteve antes do útero, eu sei o que esteve antes do tempo e fora dele.

Assim que esta 2ª frase surgiu, assim que perdi a conta aos pensamentos que tive, o tempo doeu-me pela primeira vez. Senti-me atraiçoado, ou talvez algo tivesse corrido irremediavelmente mal… afinal, pensei (pensamento n), não é legítimo prometer-se que a vida no mundo é algo bom e belo de forma leviana. O tempo e o toque provocaram-me aquilo que hoje, hoje que seguro esta arma, me faz tremer a espinha.

Enfim… é chegada a hora de expor a memória pré-uterina (sempre consciente da impossibilidade de inserir o pré-tempo dentro de frases e palavras e ideias, quando todas elas pertencem ao tempo; porque, homens, palavras imortais são como o mundo que conhecem – só existem dentro de vós).

Silêncio, eis o relato do pré-uterino:

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II

«Um dia (depois de saberes o que é um dia), saberás o que são ondas e o que é a água, mas, nesse dia, talvez já não saibas o que te estou a expor. No entanto, dizia eu, um dia (depois de pensares saber o que significa ser ou o que significa saber) saberás o que são ondas e o que é a água. E as vidas são como as ondas, breves, preciosas, efémeras, verás… belas e tremendas… Enfim, claro que não são tremendas, tudo estará nos teus olhos (lá dentro), mas são belas. E nota: estão à tona da água, tocando o céu, mas não sendo totalmente distintas do mar.
É altura de viveres. Estarás vivo.»

(Agora, que perdi a inocência e sei que conheço o barulho orgástico do mar a demolir arribas, compreendo, ou penso compreender, a próxima intervenção.)

«Se estivesses vivo, seria possível perguntares-me o que significa isso de “estar vivo”, mas não farias, porque, estando vivo, saberias o que é “estar vivo” – estando não vivo não perguntas porque ainda não buscas o conhecimento (porque ainda não existes, precisas de um início), porque ainda não provaste o fruto.

Agora conheces tudo na perfeição, mas o conhecimento não é teu (porque tu não existes), mas quando chegar o tempo, chegará o tempo em que conhecerás imperfeitamente, mas esse conhecimento será teu, plenamente teu, ser-te-á oferecido e tu vais amá-lo. Enfim, tu deves amá-lo, mas não serás obrigado a fazê-lo – serás, guarda esta palavra, livre.»

(Por isso o tempo e o toque me doeram: eu guardava a palavra “liberdade”.)

«Liberdade é, no mundo, a mais elevada paixão humana, sabê-lo-ás. Pode doer muito ou não, pode escorrer-te em lágrimas ou em gargalhadas. Quando, para lá, para dentro do teu invólucro de carne e de sangue, sentires a terra tremer profundamente, a isso chamarás liberdade.

Mas cuidado, a liberdade é como a vida e como as ondas: breve e preciosa e tremenda (aos teus olhos) e bela, mas tudo, quase tudo, no mundo a mimetiza. Um dia verás que a autossuficiência e a solidão e o isolamento poderão parecer o apogeu máximo da liberdade, mas saberás que estás enganado quando recordares que só a liberdade é o apogeu máximo de si mesma.

Dir-te-ão que o amor é uma necessidade, provavelmente… mas só porque dentro do espaço e do tempo tudo o que intuis existir fora de ti são, quase sempre, mentiras. O amor, espero que vejas, não é necessidade nenhuma, é uma escolha. E essa é a sua beleza (se um dia te perguntares o que é beleza… bem, é tudo o que viste depois do tempo e algo do que viste durante o tempo), mas, dizia eu, o amor é uma escolha. E de outro modo não podia ser, se o amor não fosse uma escolha, seria impossível existir liberdade e existir vida. E sem estas três coisas: o amor, a liberdade e a vida (por esta ordem) jamais existiria beleza. De facto, se no mundo não existisse amor, liberdade e vida, até aqui, fora do mundo, faltaria a beleza. Isso é bom ou é mau?»

(Claro que eu não sabia o que era isso do bom e do mau, pois se ainda hoje não tenho a certeza.)

«Enfim, não é bom nem mau – é morno. É aquilo que tem sido para ti tudo isto, não é bom nem mau. Mas quando vires a beleza: quando te palpitar o amor, a vida e a liberdade, logo que te pesar o jugo de saberes o que é o bom e o que é o mau… quando se crivarem os espinhos do conhecimento na tua alma e no teu corpo, perceberás.»

– Como pode tudo isso ser tão contraditório?
– Agora tens todo o entendimento, mas não vives. Um dia viverás e perderás o entendimento. Assim é.
– Não posso contemplar ambos, o entendimento e a vida, em simultâneo? – Começas a estar vivo. Vai-te. Pois só Eu sou Eu. Assim é.

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III

«Agora estás face a face mas não vês. Depois verás como num espelho. E quando chegar o dia e quando chegar a hora, verás face a face. Mas jamais saberás o dia, jamais saberás a hora… até que chegue.

Uma última coisa antes de estares, antes de seres, antes de existires dentro da terra, da carne e do útero. Tudo o que te foi apresentado, que é a Verdade, poderá ser esquecido. Isto que há para lá do tempo és tu, e só isto és tu. Isto é barro e o barro não és tu, mas pertence-te de ora em diante. Isto é o pó e do pó vem o barro. Isto é o sopro e o sopro não és tu, nem te pertence, nem te pertencerá até ao fim dos tempos, nem depois. Vai-te, vai ser vida, vai ser liberdade, vai ser amor (por esta ordem), depois é tua a beleza que vires.»

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IV
Vida comum, sem necessidade de descrição: conhecei-la e recordai-la, certamente.

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V

Esqueci-me que só a liberdade é o apogeu máximo de si mesma. Senti-a tremenda e esqueci-me que era dos meus olhos. Senti o cano frio contra a testa e então… não sentirei mais nada?

Um adeus para sempre, o último sentimento:

O sentimento que jamais poderia ser explicado, porque os que não nascem não o experienciam e os vivos não o entendem: saudade.

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VI

Primeiro, o pensamento fugaz,
O silêncio uterino…
O negro da inocência…
De quando não ditavam preconceitos
Que negro fosse o medo.
O explodir de questões mudas!
O choro! O respirar!
A vida tão frágil…
Que ser pequenino.
Que sorriso genuíno.
Que medo, surpresa e felicidade
A revolver-se ferozmente nessa calma…
Febril!
Não é um parto…
Não é bem…
Tão perto, mas não é nascimento.
É morte.

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VII

– Como te expliquei só Eu sou Eu. Contudo, ainda assim, vem. Agora entenderás que certas coisas iniciam-se no tempo mas existem para lá dele, é tal como as ondas e a água (agora que sabes o que são). Assim é.

– E assim seja.
– Assim é.
– E assim seja.
– Assim é.
– E assim seja.
– Vem.